quinta-feira, 21 de outubro de 2010

& % As Imgens para se guardar na memória JR DURAN % &

CARTAS A MIM MESMO
Tenho enviado cartas para mim mesmo desde já faz algum tempo. Neste texto, publicado na revista Audi #79, tento explicar o porque desta mania.
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Passado selado.
O filósofo e utópico renascentista Francis Bacon fez uma lista das que seriam, desde seu ponto de vista, as três descobertas mecânicas que tinham “changed the whole face and state of things troughout the world” (1). Seriam elas: a bússola magnética, a pólvora e o papel. De acordo com ele nenhuma estrela, nação ou seita conseguiu – conseguiria – exercer influência igual na vida das pessoas.
Dificilmente uso uma bússola apesar de que, confesso, levo sempre uma no fundo da minha mochila, acho que algum dia ainda vai me tirar de alguma enrascada. A segunda descoberta – a pólvora – não me é de grande utilidade direta, penso que serve mais aos exércitos. Já com a terceira descoberta é diferente. Fundamental para mim também. Porque não saio de casa sem um papel, e um caneta. Tenho a memória dispersa e idéias, e lembranças de coisas para fazer, me aparecem nas horas mais estranhas. Uma anotação rápida – contanto que depois seja legível – resolve o problema.
Bacon não o mencionou em seu tratado, mas os três inventos que ele achou fundamentais são chineses. E é com paciência oriental que venho guardando durante os últimos tempos – na verdade anos – uma série de cartas especiais. São cartas que escrevo para mim mesmo desde cada um dos hotéis em que tenho me hospedando, seja a trabalho ou de férias.
O conhecimento das rentrancias e saliênças da fotografia me servem para várias coisas profissionalmente mas, principalmente a nível pessoal, as utilizo como artimanha para congelar o tempo que ás vezes parece passar rápido demais. Uma maneira de fixar na memória os detalhes que semanas, anos depois vão se tornar imperceptíveis. Pode ser a imagem de um lugar confortável, de um objeto que nunca terei, um sorriso, o prato preparado de um almoço, a sombra que uma árvore projeta na parede. Cenas cotidianas que se repetem, aparentemente iguais – e não se engane, não o são – e que serão sempre as primeiras a desaparecer, enterradas na quantidade de informações arquivadas no labirinto da memória.
Alguém me disse que escrevia para não morrer. Ao escrever as cartas não chego a tanto. A razão pela que as escrevo é menos dramática, mais prática e simples. Escrevo, assim como fotografo, para guardar o tempo. Conto nelas como é meu estado de espírito naquele momento e isto se torna o registro de um momento, impresso em um papel, que anos depois, funcionará como uma janela aberta capaz de iluminar um pedaço do passado.
Para isto sigo algumas regras, que com o tempo fui estabelecendo. Um procedimento mais ou menos comum. Uma delas é a de que as cartas só podem ser escritas em papel timbrado. Ou seja, se o hotel não tiver um logotipo e endereço impresso em papel e envelope, nada feito. Outra é a de que elas tem de ser escritas com caneta na cor preta. Confesso que durante algum tempo as escrevi em tinta verde, como fiquei sabendo e que Pablo Neruda o fazia. Mas como o conteúdo das cartas é mais existencial do que poético, decidi, então, voltar ao preto sobre o branco.
Outra das regras é a de, sempre que o tempo permitir, ir ate o posto do correio mais próximo, fazer a fila, e pedir para escolher um selo. Grande e bonito. Em alguns lugares é fácil. Em Hong Kong, por exemplo, um dos postos fica a poucos metros do Hotel Intercontinental. Em outros é mais complicado, mas é parte do ritual. Em Los Angeles tive de pedir para o taxi, a caminho do aeroporto, para que parasse um segundo na frente de um posto de correios que surgiu no meio da corrida. Felizmente a carta estava á mão. De qualquer maneira é uma experiência curiosa. Os trabalhadores nos correios, estão acostumados a ter clientes que se preocupam apenas com a urgência das encomendas e ficam radiantes e iluminados ao descobrir que alguém pede para eles o selo mais interessante que estiver em circulação no dia. As reações são sempre divertidas. Em Asmará, a capital da Eritreia, a mulher saiu de trás do guichê e me convidou a tomar um café enquanto me contava das dificuldades do país. Em Macau, então, o rapaz deixou uma fila esperando atrás de mim e me levou numa salinha para me mostrar o porquê os correios da ilha são famosos por produzir selos belos e elaborados. Ás vezes é no concierge do hotel em quem confio para colocar as cartas no correio (2). Em alguns lugares isto é comum. Em outros nem tanto. Em Iquique, no Chile, a moça ficou surpresa. Ninguém antes tinha feito uma solicitação como aquela.
Uma outra das regras é colocar alguma coisa dentro do envelope, junto com o papel. O recibo de um restaurante, o ticket de um filme que assisti ou o ingresso a algum museu que dificilmente volverei a visitar. Durante alguns anos, antes da fotografia se tornar totalmente digital, polaroids (alguém lembra o que era isto?) serviam como uma espécie de reforço visual para estas cápsulas de memória (3). Mas uma coisa as cartas tem, rigorosamente, em comum. Nunca, até agora, elas foram abertas.
Enquanto o passado escorre entre os dedos e os neurônios do cérebro uma parte dele esta preso, para sempre, entre duas folhas de papel.
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(1) Em “Novum Organum” (1620).
(2) Durante estes anos todos apenas três cartas não chegaram. Foram as escritas na Índia e entregues na mão de três concierges de hotéis luxuosos – da mesma cadeia – ostentando belos turbantes. Não adiantou muito.




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